Abençoado & Danado do Samba, de Ricardo Azevedo, busca identificar, caracterizar e compreender algo que, embora bastante diversificado e multifacetado, poderia ser sintetizado pela noção de discurso popular. Este, por sua vez, estaria inserido numa assistemática, mas riquíssima e influente “poética popular”, um conjunto de princípios que permitem afirmar que tal discurso seja de fato predominantemente popular e, também, capaz de determinar e reunir certas características, recursos e procedimentos recorrentes em sua linguagem.

Ter acesso ao que possa ser descrito como um discurso popular ou a ele associado, mesmo de modo parcial, ao que de alguma forma contribua para o estabelecimento de uma poética popular, é do maior interesse de todos aqueles que buscam compreender os pressupostos e os elementos constitutivos de uma linguagem que pretende ser acessível, pública e compartilhável. Além disso, conhecer os procedimentos com a linguagem utilizados e os temas abordados por compositores clássicos, como Noel Rosa, Ismael Silva, Wilson Batista, Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho ou Dorival Caymmi, e compará-los com os de compositores modernos, como Antônio Carlos Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, oferece uma extraordinária e prazerosa introdução à linguagem poética e à literatura em geral.

As letras de samba podem ser consideradas um repositório de substratos, premissas, concepções, valores e procedimentos que compõem um conhecimento diversificado e heterodoxo, enraizado em modelos de consciência, estruturas de pensamento ou hábitos mentais fundados, por sua vez, na vida coletiva, na oralidade e em certos padrões culturais, éticos e estéticos, não coincidentes com os padrões culturais, éticos e estéticos oficiais e hegemônicos. Em entrevista concedida a Francisco de Assis Barbosa em 1044, Mário de Andrade afirmou ser “o problema máximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo”. Tal é a busca desta obra.