Poema do livro Aula de carnaval e outros poemas

Ática | 2006

Minha estrada

Antes morava dentro de uma barriga
Vidinha mansa como aquela nunca vi
Eu lá boiando mais feliz do que lombriga
Jamais pensei que fossem me tirar dali

Mas de repente fui jogado nesse mundo
Meu nascimento aconteceu sem eu querer
Foi um desgosto, uma desgraça, eu lá imundo
Tomei um susto e até pensei que ia morrer

Então berrei feito bezerro desmamado
Ninguém ouviu o meu lamento genuíno
Botaram touca, fralda e blusa com babado
Vestido assim fui aprender a ser menino

Peguei na infância de sarampo a bronquite
Caxumba, gripe, tosse e um monte de coceira
Rubéola, verme, catapora e meningite
Dor de barriga por comer tanta besteira

Pintei, bordei e aprontei, isso eu confesso,
Desci telhado de carrinho rolimã
Fui bom de bola e no baralho fiz sucesso
Banquei o herói, fiquei pelado e fui tarzan

Mal eu cresci já me mandaram pro colégio
Decorei conta e aprendi o beabá
Lá me disseram que eu não tinha mais remédio
Mas foi na escola que aprendi a namorar

Nessa matéria eu tirei dez pela pesquisa
Namorei Júlia, Amanda, Carla, Lúcia e Bete
Depois foi Cláudia, Dora, Lurdes e Marisa
Rosana, Bruna, Conceição e Margarete

Faltou dinheiro e precisei largar a escola
Fui trabalhar e aproveitei pra ver o mundo
Saí vagando e de vagar gastei a sola
E foi assim que me tornei um vagabundo

Fui pra Manaus, passei Belém e São Luís
De Fortaleza pra Natal e João Pessoa
Cruzei Recife, Maceió e Aracaju
De Salvador para Brasília é um pulo à toa

De Palmas fui para Goiânia e Cuiabá
De Campo Grande fui para Belo Horizonte
Cruzei Vitória rumo ao Rio de Janeiro
Depois São Paulo onde comi pizza de monte

Desci também pra Curitiba e Florianópolis
Um chimarrão em Porto Alegre eu fui tomar
(De capital não deu pra visitar Rio Branco,
Nem Boa Vista, Teresina e Macapá)

Se eu não falei de Porto Velho, minha gente
Foi falha minha, pois também estive lá
Ando perdendo a memória ultimamente
Mas sai da frente que eu quero continuar

Quando era jovem e ainda não tinha experiência
Achei bonito ser metido a valentão
Armei encrenca e veja que coincidência
Tomei um chute bem ali e fui pro chão

Vi que essa vida de malandro não prestava
Fui trabalhar de engraxate e biscateiro
Fui sorveteiro e vendi bala, eu não parava,
Garçom, feirante, vigilante e jardineiro

Fui salva-vidas, camelô e motoqueiro
Pintor, pedreiro, balconista, e carpinteiro
Depois coveiro, cozinheiro e trambiqueiro
Mas nem assim eu consegui ganhar dinheiro

Meu maior sonho, eu digo aqui, foi ser sambista
Tocar pandeiro, cavaquinho e violão
E numa roda de pagode como artista
Ser bom de verso e fazer improvisação

Então casei e só de filhos tive uns dez
A que nasceu primeiro foi a Roselina
Veio Darlon, Deusdete, Clinton e Manassés
Daiane, Gelson, Gildivan e Jardilina

Ainda teve o Ediman que faleceu
Rayane e Salizete vieram também
Foi muito filho mas até que eu tive sorte
Tá tudo forte e sendo assim me sinto bem

Só sei dizer que nessa vida eu fiz de tudo
Sofrer sofri mas fui feliz para ser franco
Infelizmente o tempo é pássaro miúdo,
Quando fui ver estava de cabelo branco

Minha uns noventa anos nem lembro direito
Eu bem velhinho olhei no espelho e não vi nada
Acho que o coração brecou dentro do peito
E foi assim que eu terminei a minha estrada

(Agora chega de lembrança e biografia
Se a vida é um mar até que eu fui bom marinheiro
Fiz o que pude e lutei muito noite e dia
Luta comum de quase todo o brasileiro)