Terra bruta

Cia. das Letras | 2010 | Ilustrações: Sergio Kon

(Terra bruta. In: PRIETO, Heloisa (org.) Metamorfoses. São Paulo: Companhia das Letras, 2010)

— Por que o senhor não inventa alguma coisa pra fazer?
Era mais ou menos isso o que as pessoas costumavam perguntar ao homem enterrado no chão com terra quase até o pescoço.
Ele, pelo jeito, não estava nem aí.
Na verdade, pouca gente se preocupava, fazia perguntas ou dava conselhos A maioria não ligava a mínima. Se o cara queria viver enterrado, que vivesse, problema dele.
Os que conseguiam sair de dentro de si e se colocar no lugar do homem diziam coisas como:
— Sai dessa, meu!
— Não vê que está perdendo sua vida metido nesse buraco?
— Isso não faz o menor sentido!
— E faz sentido ficar andando por aí, pra lá e pra cá? — respondia o homem enterrado quase até o pescoço. E perguntava: — Está indo para onde?
— Estou voltando do trabalho, indo pra casa.
— Pra quê?
— Como, “pra quê”? Eu moro em minha casa!
— Minha casa é este buraco — explicava o enterrado. — Aqui eu moro, aqui eu acordo, aqui eu durmo, aqui eu vivo, aqui eu vou morrer. Qual o problema?
— Mas… ficar preso assim o dia inteiro?
— Quem disse que estou preso? — replicava ele com voz surpresa. — Estou aqui porque quero. Quem manda na minha vida sou eu. Saio a hora que quiser!
E ainda cantarolava um samba antigo:

Quem sabe da minha vida sou eu
Não devo dar obediência a ninguém
Quem sabe se eu passo mal
Quem sabe se eu passo bem
Só vivo na vida o que me convém…

As pessoas balançavam a cabeça diante daquele corpo enterrado no chão cantando samba.
— Se pode sair a hora que quiser, então saia! — desafiavam alguns.
— A troco de quê? — perguntava ele.
Era difícil saber o que dizer àquele homem.
— Pra passear por aí, ué.
— Pra visitar os amigos.
— Pra fazer qualquer coisa!
O cara enterrado, ou melhor, a cabeça, o pescoço e um pouco dos ombros do cara enterrado davam risada.
— Primeiro — dizia ele —, já passeei muito por aí, conheço isso tudo como a palma da mão. Segundo, meus amigos quando querem me visitam. É muito melhor. Eles gostam porque é sempre fácil me encontrar. Terceiro: sou aposentado, já fiz muita coisa, trabalhei o que tinha que trabalhar. Agora, prefiro ficar em casa, ou seja, aqui mesmo, sem fazer coisa nenhuma.
Se alguém tentava argumentar dizendo, por exemplo, que havia lugares que ele não conhecia, lugares portanto onde ele nunca tinha passeado, ele respondia na lata:
— Todos os lugares são parecidos. Têm céu, têm chão, têm árvores, têm casas, têm ruas, praças, prédios de apartamento, postos de gasolina, lojas, bares, cachorros mijando nos postes, gatos atravessando as ruas, passarinhos aqui e ali, restaurantes, automóveis, caminhões, motocicletas, aviões… é tudo a mesma coisa. Uns lugares podem ter praia e outros não. Alguns têm montanha, outros não. Uns são modernos, outros antigos. E daí? — E completava: — Já estive até em outros países, e posso garantir: é tudo exatamente igual. As diferenças entre os lugares são detalhes tão mínimos, tão mixos, tão minúsculos que não dão nem pro cheiro!
E, se tentavam replicar dizendo, por exemplo, que havia gente que ele ainda não conhecia, aí piorava:
— Conhecer gente? Pra quê? Eu já conheci e ainda conheço um monte de gente! Todas as pessoas que vi até hoje têm cabeça, tronco e membros. Todas têm olhos, orelhas, queixo e sobrancelhas, e andam para lá e para cá. Uns são altos, outros são baixos. Tem brancos, pretos, amarelos e mestiços. Todos falam, têm ideias, sonham, sentem fome, têm medos, dizem besteira, têm dores no corpo de vez em quando, ou namoram, ou não namoram, ou são solteiros ou casados, separados ou viúvos. Podem ser crianças, jovens, adultos ou velhos. Em todo lugar é sempre assim. É tudo a mesma coisa, não tem diferença nenhuma. E as exceções são tão poucas que pra mim tanto faz como fez.
— Mas… e livros, por exemplo? Às vezes o senhor não sente vontade de ler?
— Uma pessoa da minha idade — explicava ele — já leu mais do que merecia. Veja meu caso: aprendi a ler com uns seis anos. Desde então, li um monte de revistinhas, livros didáticos, livros de literatura, rótulo de tudo quanto é tipo de produto, bula de remédio, jornais, revistas, cartazes de propaganda, o catecismo, letreiros de cinema, contratos, notas fiscais, contas para pagar, cartas, bilhetes, pelo amor de Deus! Eu não nasci ontem! Se for somar tudo o que li durante a vida, deve dar mais de um milhão de páginas. Por baixo! E vocês ainda querem que eu leia mais!
O cara enterrado tinha contratado uma senhora para fazer comida. A mulher aparecia três vezes por dia e alimentava o patrão com uma colher de sopa.
Nos dias de chuva ou de sol muito forte, o sujeito desenterrava o braço direito e abria um guarda-chuva preto, dos grandes, com cabo de madeira.
Ninguém sabe como ele fazia para ir ao banheiro, se é que ia.
— Minha casa é meu buraco. Minha sala é meu buraco. Meu quarto é meu buraco. Minha cama é meu buraco. Meu armário é meu buraco. Meu sofá, meu jardim, minha vida é meu buraco. Melhor impossível. Se melhorar, estraga!
Enquanto isso, as pessoas passavam e passavam. Gente apressada indo ou voltando do trabalho. Gente de uniforme escolar carregando mochilas e cadernos. Policiais com cara de poucos amigos. Homens e mulheres entrando em bancos com contas para pagar. Bandidos prontos para o assalto. Donas de casa cheias de compras de supermercado. Desempregados procurando emprego. Aposentados corados, de tênis e abrigo, fazendo caminhadas. Pessoas em cadeiras de rodas. Casais de namorados. Mulheres magras pedindo esmola com crianças no colo. Atletas com pernas musculosas correndo velozes ninguém sabe para onde.
“É ridículo!”, pensava o homem, balançando a cabeça. “Como tanta gente pode perder tanto tempo assim à toa!”
Ali perto, havia um banco de madeira pintado de verde. Um dia, um andarilho, desses que vivem a vida andando sem rumo pelo mundo afora, sentou-se no banco para descansar. Examinou o cara enterrado no chão e resolveu puxar conversa:
— Mora aí no buraco?
— Moro. E você?
— Moro por aí.
— Por aí onde?
O viajante explicou que não tinha casa. Seu endereço era o mundo.
O homem enterrado ficou surpreso:
— Puxa, mas, se seu endereço é o mundo, então sua casa é o mundo!
— Acho que sim — respondeu o outro.
O enterrado ficou inconformado. Para ele, morar no mundo era uma bobagem. Muita energia jogada fora. Pura perda de tempo.
— Mas o mundo é cheio de pessoas, cidades, estradas e lugares que eu ainda nem conheço — argumentou o viajante.
— Veja — disse o enterrado —, todas as pessoas são iguais, todas as cidades são iguais, todas as estradas são iguais, todos os lugares são iguais. Morar por aí pra quê? O mundo é grande demais. Dá muito trabalho. É como ter uma casa mais que imensa que a gente já conhece de cor e salteado. É um tédio. É uma inutilidade.
E deu uma sugestão:
— Por que você não faz um buraco no chão e vive como eu?
O andarilho discordou. Em primeiro lugar, ele não achava que tudo no mundo era tão igual assim. E deu um exemplo:
— Já andei por todo canto, conheci muita gente diferente, mas ainda não tinha cruzado com uma pessoa como você, um cara que vive enterrado até o pescoço dentro de um buraco. — E disse mais: — Concordo que sua casa é seu buraco. Que sua sala é seu buraco. Seu quarto é seu buraco, sua cama, seu armário, seu sofá, seu jardim, sua vida é seu buraco. Agora, dizer “melhor impossível”, essa não!
O homem enterrado quis saber por que não.
— Seu buraco parece pequeno, mas não é. Pense bem. Sua casa não é um buraco, sua casa é a terra, e a terra é mais do que imensa. Muito maior que o mundo aqui em cima. A terra mesmo, a terra bruta, essa nem de longe você pode dizer que conhece!
Como já tinha descansado o suficiente, o viajante levantou-se, espreguiçou-se, despediu-se e caiu no mundo.
Nada do que ele disse impressionou o enterrado, tirando a última frase: “Sua casa não é um buraco, sua casa é a terra, e a terra é mais do que imensa. Muito maior que o mundo aqui em cima. A terra mesmo, a terra bruta, essa nem de longe você pode dizer que conhece!”.
E não podia mesmo.
A metamorfose aconteceu no dia seguinte. Nem bem o comércio abriu suas portas, o homem enterrado saiu do buraco, procurou uma loja de ferramentas e comprou pá, picareta, dois rolos grandes de corda, uma escada alta de madeira, botas de borracha e um chapéu de plástico, desses que têm uma lanterna presa na frente. A partir daquele dia começou a cavoucar a terra.
— Por que o senhor não inventa outra coisa pra fazer?
Foi mais ou menos isso que as pessoas passaram a perguntar ao homem.
Enfiado na terra, ele agora vivia ocupado.
Por sorte, do outro lado da rua, uma construtora estava fazendo um aterro. O homem combinou que os pedreiros podiam retirar a terra que, aos borbotões, brotava diariamente da buraqueira.
— Sai dessa, meu!
— Não vê que está perdendo sua vida metido nesse fosso?
— Isso não faz o menor sentido!
— Não faz sentido, vírgula — respondia o cara enterrado, lá do fundo do buraco, cavando e cavando. E explicava: — Minha casa é este buraco. Aqui eu moro, aqui eu acordo, aqui eu durmo, aqui eu vivo, aqui eu vou morrer. O problema é que descobri que não conheço minha casa direito. Não dá pra viver em paz numa casa que a gente nem conhece!
— Mas… ficar o dia inteiro preso nesse buraco?
— Quem disse que estou preso? — gritava ele lá do fundo. — Estou aqui porque quero. Quem manda na minha vida sou eu. Saio a hora que quiser!
E, enquanto cavoucava, cantarolava outro samba , alterando um pouco a letra:

Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Desse buraco eu não saio não
Desse buraco eu não saio não

 

As pessoas balançavam a cabeça diante daquela figura com o rosto coberto de terra cantando e cavando um buraco no chão.
E o buraco aumentava cada vez mais.
Três vezes por dia, a senhora que fazia comida aparecia, descia a escada de madeira e entrava no buraco para alimentar o patrão.
Dizem que o cara cavou um poço de mais ou menos dezessete metros de profundidade. Depois, em vez de continuar cavando para baixo, resolveu cavar para o lado esquerdo.
— Foi como tirar cara ou coroa dentro de mim — explicava ele com a boca e os dentes cheios de terra. — Parei, pensei e decidi cavar para a esquerda. Se a gente na vida não seguir nossa intuição, vai seguir o quê?
O tempo é um túnel que cresce no vazio.
Agora, o homem raramente saía do buraco. Tinha ido longe demais.
A senhora que fazia comida não aguentou aquele sobe e desce todos os dias. E sua filha começou a levar comida para o homem do buraco.
Nas raras vezes que o enterrado punha a cabeça para fora do buraco, as poucas pessoas que conseguiam sair de dentro de si e se colocar no lugar dele diziam coisas como:
— Não vê que está perdendo sua vida metido nesse buraco?
— Isso não faz o menor sentido!
— E faz sentido ficar andando por aí, pra lá e pra cá, num mundo que todo mundo já conhece? — respondia uma voz lá longe, no fundo. E completava: — Meu mundo é meu buraco, meu buraco fica debaixo da terra, e debaixo da terra, a terra bruta, essa eu não conheço!
A filha da senhora que fazia comida, era jovem mas, mesmo assim, não estava conseguindo ir e voltar no mesmo dia.
— Não dá. O buraco é fundo demais — explicava ela exausta, coberta de suor e barro.
Ninguém sabe exatamente quando foi. A partir de determinado dia, o homem nunca mais saiu do buraco.
Durante um tempo, a filha da senhora ainda levou comida para ele lá no fundo. Certo dia, ela também desapareceu.
Foi então que chamaram a polícia e uma equipe de resgate entrou buraco adentro. Uma semana depois, os soldados voltaram, esgotados e cobertos de lama, dizendo que haviam desistido pois aquele túnel não tinha fim.
Contam que o homem que antes vivia enterrado no chão com terra quase até o pescoço e que depois decidiu fazer um buraco para conhecer sua casa, um dia encontrou ele mesmo no fundo do fundo mais fundo do fundo do buraco.
Segundo dizem, foi um encontro emocionante. Os dois ficaram muito tempo abraçados, chorando em silêncio. Depois, parece que sentaram um na frente do outro e começaram uma conversa que ainda não acabou.
Comenta-se que a moça, filha da senhora que fazia comida, se apaixonou pelo homem do buraco e agora vive com ele e com ele mesmo, os três juntinhos no calor úmido e fértil da terra bruta.