O motoqueiro que virou bicho

Moderna | 2012 | Ilustrações: Capa: Kiko Farkas

Cap. 12

 

Minha vontade de morrer foi curada, ou, pelo menos, adiada, por uma pancada que quase me quebra a espinha em três pedaços. Mal tive tempo de me virar e lá vieram outras, recheadas de pontapés e palavrões, provenientes de uma figura magra e sinistra. O sujeito me xingava, me ameaçava e, com uma vassoura, fui enxotado e trancado no lavabo.

Fiquei, debaixo da pia, dolorido e atordoado, ouvindo o homem praguejar enquanto arrumava e limpava a sala.
O cara parecia bastante irritado com a bagunça que eu havia feito. De vez em quando, abria a porta do lavabo só para me dar outra vassourada. Encolhido atrás da privada, eu tentava me proteger.

Mais tarde, fui levado até a rua e atirado sobre uma carroça, estacionada do lado de fora. O homem trancou a casa, saltou na carroça e berrou: “Vamo, Sereno!”.
Enquanto a carroça pererecava pelos paralelepípedos, eu, amarrado e trêmulo, espiava a paisagem por uma fresta de madeira.

Atravessando Guaratinguetá, pegamos uma estrada larga de terra e pedregulhos. Os ônibus passavam levantando poeira. De vez em quando, o homem xingava a mãe do cavalo. Uma varejeira ficou tentando morder minhas orelhas. Paramos em frente a uma venda na beira da estrada. Pude examinar melhor o sujeito. Era comprido, usava um chapéu preto de abas largas, sandália havaiana e um bigodinho fino desenhado em cima da boca. Andando devagar, ligeiramente inclinado para a frente, foi até a venda, comprou pão, leite e tomou pinga. Eu assistia a tudo pela fresta. Voltou depois, arrastando os pés, subiu na carroça e acendeu um cigarro. “Toca em frente, Sereno! Eia!” E lá fomos nós de novo, rangendo debaixo do sol.

Saindo da estrada de pedregulhos, enveredamos por uma estradinha de terra e começamos a subir uma serra. Eu espiava e acompanhava o esforço do cavalo. De vez em quando, surgia uma casinha de sapé. Passamos por plantações de milho e cana e por uma olaria abandonada. O mato aumentava cada vez mais. Ao dobrar uma curva, notei um cachorro deitado na estrada.

Estava de barriga para cima, inchado, cheio de moscas e formigas. Mais adiante, passamos por outro na mesma situação e logo depois por mais outro. Lembro de ter achado estranho tanto cachorro morto. Deviam, pensei comigo, ter sido atropelados, se bem que aquela estradinha não parecia ter movimento algum. O caminho foi ficando mais e mais estreito. Alguém surgiu a cavalo, vindo em sentido contrário. A carroça parou e os dois homens conversaram rapidamente. Tive a confirmação de que o sujeito de chapéu preto era mesmo seu Miguel. O outro, a cavalo, um negro, descalço, perguntou a seu Miguel se estava sabendo da última feita por “ele”. Seu Miguel respondeu que não. O outro contou que “ele” quase tinha pegado o vermelho, o cachorro do Firmino.

“O paqueirinho?”, perguntou seu Miguel, espantado.

“O próprio!”, confirmou o negro. E disse mais. Que o Firmino tinha chegado na hora e que o Firmino ficou bravo e acertou um soco que quase vaza a vista “dele”. “Ê, lasqueira!”, exclamou seu Miguel, dando um tapa na própria perna.

E ameaçou: se aquele filha da mãe aparecesse no sítio, ia ver uma coisa. Disse que “abria a cabeça dele com a enxada e depois pegava o corpo, picava, misturava no fubá e dava pra cachorrada comer”.

O negro caiu na gargalhada. Seu Miguel também. Senti medo, leitor. Os dois se despediram e — “Vamo, Sereno!” — nossa viagem prosseguiu.

O mato agora roçava as laterais da carroça. Passamos por uma cruz enterrada na beira da estrada. O vento soprava um perfume abafado. Umas borboletinhas passaram, amarelas, saracoteando. Após mais subidas e descidas, atravessamos uma ponte de madeira e paramos diante de uma porteira vermelha. Sobre a cerca de arame telado erguia-se uma placa pintada à mão: “Sítio Santa Rita”.

Seu Miguel desceu da carroça, abriu a porteira e entrou a pé, puxando o cavalo pela rédea. Continuei espiando pela fresta. O lugar era agradável. No alto de uma elevação, cercada de árvores, havia uma casa térrea e grande, fechada, com um terraço coberto na frente. Ao lado, mais abaixo, outra, menor, com as janelas abertas, fumacinha branca escapando da chaminé e varal cheio de roupas penduradas.

Sempre arrastando os pés, seu Miguel fechou a porteira, voltou e, com um safanão, arrancou a corda do meu pescoço, atirando-me fora da carroça.

Logo me vi cercado por vários cachorros que latiam e arreganhavam os dentes. Não sabendo o que fazer, resolvi ficar onde estava, sem mover um músculo. Era um bando de vira-latas, cada um diferente do outro, todos magros e de pelos espetados. Apesar de serem muitos, uns seis ou sete, não pareciam bravos e, confesso, não senti medo. No fim, os latidos diminuíram e um deles, aproximando-se, desconfiado, cheirou meu focinho e minhas partes íntimas. Senti cócegas, mas resolvi aguentar firme. Os outros, tomando coragem diante da minha passividade, fizeram a mesma coisa. Dei minhas cheiradelas também. Notei, aqui e ali, um rabo abanando amistosamente. Um dos cachorros, então, afastou-se e urinou na roda da carroça. O bando inteiro urinou no mesmo lugar. Por via das dúvidas, fiz a mesma coisa.

O ambiente foi ficando mais ameno. Seu Miguel havia desatrelado o Sereno, levando-o para o estábulo. Depois, empurrou a carroça até a garagem. Voltou acompanhado de uma mulher gorda e desdentada, parecia uma índia, enxugando as mãos no avental, e de um menino de uns dez anos, de pele escura e cabelos alourados.

Seu Miguel explicou aos dois que a ordem do patrão era que tomassem conta de mim. A mulher resmungou alguma coisa que não consegui entender. Seu Miguel respondeu que o jeito era ficar de olho. Em seguida, mandou o menino soltar o Capitão.

Um cachorro escuro, maior e mais forte que os outros, apareceu com as orelhas levantadas. Adotei novamente a tática de ficar parado. O grandalhão veio rosnando para cima de mim. Eu estava cansado. Resolvi mandar o vira-lata para o inferno. Foi meu erro. Minhas palavras de indignação se transformaram em latidos e dentes arreganhados. Como resposta, o cachorro simplesmente saltou em meu pescoço. Tentando me desvencilhar, tropecei, caindo de cara num monte de areia. Seu Miguel e a família davam risada. Os outros cachorros, assistindo à cena, latiam alegres e folgados. Fiquei com os olhos fechados, o focinho enfiado na areia. O grandalhão vira-lata então se aproximou, levantou a perna e mijou na minha cara!

O sangue, leitor, borbulhou em meu cérebro, trazendo um sentimento quase selvagem de despeito e indignação. Calma lá! Eu sou gente!, lembro de ter pensado, com o rosto ensopado. Eu não era um vira-latinha qualquer, não senhor. Meu nome é Lúcio. Tinha família. Sou ou pelo menos era um animal racional pertencente à espécie humana. Sabia ler. Tinha feito o jardim de infância, o ensino fundamental e médio completos e, no momento, era praticamente um universitário. Conhecia gramática, matemática, geografia, história, biologia, sabia tirar raiz quadrada, sabia de cor várias leis da física, sabia usar uma tabela periódica e até arranhava um pouco de inglês. Além disso, tinha RG, título de eleitor, CPF, certificado de reservista, carteira de motorista e conta no banco; pequena, mas tinha. Não! Eu não podia aceitar uma humilhação como aquela, principalmente vinda de um animal inferior, de um vira-lata qualquer, e ainda por cima diante de uma plateia!

Lembro de ter agido por instinto. Enchi a boca de areia, virei o corpo, fiquei em pé sobre as duas patas e cuspi com toda a força nos olhos arregalados do grandalhão, que recuou, perplexo.  Aproveitando-me disso, mordi seu focinho com todos os meus dentes e a força ancestral dos meus antepassados mais primitivos. Deu certo. O cachorrão fugiu ganindo e fungando, com o rabo entre as pernas. Ficou longe, amedrontado, com o focinho sangrando, tentando tirar a areia dos olhos com as patas.

Até estufei o peito ao notar o respeito saltando dos olhos e do silêncio dos outros cachorros.

Seu Miguel já tinha ido cuidar da vida. Voltou mais tarde, carregando um latão enferrujado com uma espécie de sopa grossa de fubá, arroz e uns poucos pedaços de carne misturados. Atirou a comida no chão e voltou para casa arrastando os pés.

Apesar de estar com fome, me recusei a comer. Preferia um milhão de vezes morrer de inanição a me rebaixar e engolir aquela gosma nojenta em companhia daqueles vira-latas. Fiquei longe, vendo os infelizes devorarem apressados o fubá espalhado no chão.

Jurei a mim mesmo fugir naquela noite, e foi exatamente o que fiz.