Contos de Espanto e Alumbramento
A começar pelo título: contos de espanto você sabe o que é. E alumbramento? Surpreender a gente com palavras, não sozinhas, mas uma junto com as outras, dando um sentido maior ao que está sendo dito, é uma arte. Ricardo Azevedo é um grande conhecedor dessa arte.
Lembro-me que quando li o primeiro livro desse autor, já faz um tempão, fui enredada no seu modo de contar, inesquecível. Então, comecei a me perguntar que qualidade era essa que tornava o texto de Ricardo Azevedo tão peculiar e apaixonante.
Muitos autores reescreveram contos milenares. Cada um, de acordo com a visão de mundo comum na sua época, com uma determinada intenção, tratou de príncipes, tramas, paisagens e costumes. Voltaire escreveu Zadig, recontando contos orientais. O Fausto, de Goethe, retoma o tema popular do homem que vendeu a alma para o diabo. No Brasil, Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, entre muitos outros, mergulharam nas fontes populares e reinventaram personagens e estórias contadas pela gente reunida nos serões em volta da fogueira.
O conto popular brasileiro, na voz dos contadores que percorriam as fazendas, é enxuto. Nele há uma maneira peculiar de encadear as palavras, de dizer o essencial para que a gente entenda o que está acontecendo. É o que ocorre, por exemplo, no conto “Maria Gomes”: “O pescador prometeu pro peixe que daria pra ele a primeira coisa que aparecesse quando ele chegasse em casa. Sempre era o papagaio que vinha. Mas, naquele dia, quem veio foi sua filha”.
Ricardo Azevedo também inventa de novo as matrizes populares, falando para crianças e jovens de hoje. Mas vai além, conversa com a estória popular e a escreve apresentando seu modo de compreender o que está acontecendo e também o que ele acha que poderia estar se passando na cabeça dos personagens. Traz os pensamentos, a angústia, a surpresa. Esse mesmo trecho de “Maria Gomes” fica assim nas suas palavras: “Era a coisa mais linda que vinha vindo, mas não podia: sua filha”.
Quer dizer, ele cria em imagens o que vai dentro do carrilhão do conto e a estória ganha um brilho singular, formado pela emoção de quem mergulha nas entrelinhas e se aventura a interrogar o maravilhoso.
Vejamos outro trecho: “A moça Maria Gomes arregaçou a saia e entrou no mar. A água vagarosa tomando posse do seu corpo.(…) O horizonte intacto dividia o mundo em duas partes”. Pare você um minuto e pense nessa última frase. Invenção literária, será que não é isso? Quando o autor faz a gente pular do que está dito para o não dito, abrindo frestas pra gente ler o conto de outras maneiras, além dos acontecimentos relatados?
Ao reescrever o conto popular para crianças e jovens, Ricardo expressa o desejo, a paixão ou a discussão que está dentro da alma do personagem com a pulsação de hoje em dia. Trata o texto rigorosamente como arte literária. Que intenção é essa que conduz o autor na sua escritura?
Tem gente que escreve para crianças ou para jovens com palavras corriqueiras, como se estivesse querendo “barganhar” a cumplicidade dos leitores. Imaginam um público a partir de estereótipos. O resultado é uma linguagem coloquial, que, na maioria das vezes, é artificial e sem poesia. Ou tem um arremedo de poesia adocicada, como se a criança não fosse capaz de entender “arte para valer”. Ricardo Azevedo está longe de caber nessa categoria de autores.
Existe uma qualidade amorosa no seu talento literário que transforma suas indagações e algumas certezas em pura poesia. Não escreve “para crianças” ou “para jovens”, mas conversa à vontade com crianças e jovens, com qualquer um. Seu estilo fala do escondido das relações afetivas, trazendo aspectos humanos que latejam nos arquétipos exemplares.
Na escritura de Ricardo Azevedo, o conto popular está lá, na sua inteireza, mas é como se o autor o recontasse bisbilhotando o acontecido. Debruçado sobre o enxuto material ancestral, ele ousa, escutando as ressonâncias que essas palavras de tempos pra lá de antigos produzem no homem que ele é, hoje: “Uma lembrança ecoou nele, viva e antiga. Também um dia fora jovem. Também um dia sentira vontades. Fomes e febres de partir, viajar, conhecer novos cami-nhos, medir a própria força, contra tudo e contra nada”.
Alumbramento, será que não é isso?
Claramente apaixonado pela cultura brasileira, é um artista pesquisador. Estudioso, investiga o tema da cultura popular, embrenhando-se pelos textos e levantando questões. Curioso, puxa conversa com as pessoas na rua, discute idéias e maravilha-se com as riquezas das nossas raízes culturais.
Os contos populares têm sido recontados ao longo de nossa história pelas amas de leite, pelos viajantes, mascates, contadores de estórias que habitaram e habitam as mais diversas regiões do Brasil. Como um rio que não pára de correr, são continuamente relembrados por pessoas que conhecem o valor de sua sabedoria. Ricardo Azevedo faz parte desse rio, contribuindo amorosamente com seus arranjos peculiares de palavras tão antigas.
Vocês que são crianças e jovens de hoje, formados no mundo da inglória globalização, têm neste livro a oportunidade de entrar em contato com o que é genuinamente nosso e recordar um lugar de pertencimento valoroso: é legal a gente fazer parte do povo brasileiro. Melhor ainda é poder se assombrar e se alumbrar com isso.