O livro das palavras
Cap. 5
O livro das palavras seguiu caminhando por um chão cada vez mais inesperado, cheio de tipos de terra misturados, areias, pedras, folhas e buracos, que alguns chamam “estrada de terra”. Foi tentando entender o tamanho e a forma que um amor pode ter.
Um fogo que arde sem se ver? Uma ferida que dói e não se sente? Um contentamento descontente? Não conseguia, nem de longe, encontrar nada parecido dentro das páginas de si mesmo.
– Justo eu, que tenho milhares de verbetes! estranhou ele, pensativo.
Apesar disso, sentia-se bem.
Tinha sido delicioso descobrir a força bruta do mar, as ondas incontroláveis indo e vindo batendo na praia e aquele casal apaixonado.
“A paixão é parecida com o mar”, pensava o dicionário sem saber direito explicar como nem por quê.
A estrada da terra era cheia de subidas, descidas e curvas. Depois de uma longa descida, o livro viajante encontrou um casal de velhos.
Ele usava chapéu de abas largas e um paletó muito puído. Ela vestia uma saia comprida e tinha uma flor presa nos cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo. Fumava cachimbo. Os dois conversavam sentados num barranco. Ele estava descalço. Ela usava sandália de plástico e meia.
O livro se aproximou. O velho perguntou se ele sabia as horas. O livro disse que sim.
– Horas são “segmentos de tempo equivalentes a sessenta minutos, e vigésima quarta parte de um dia solar ou do tempo em que o planeta Terra leva para girar em torno de si mesmo”.
O casal arregalou os olhos.
– Ô loco sô! A gente só queria saber as horas, moço.
O dicionário explicou que sabia muito bem o que eram as horas, os minutos e os segundos mas não usava relógio.
A mulher mudou de assunto. Contou que eles pararam ali para descansar. Pretendiam ir à missa mas a igreja ficava longe.
O dicionário revelou que era um livro e que estava viajando para conhecer a vida e o mundo. .
– Livro? perguntou o homem. – Livro de histórias?
– Muito mais que isso! Sou um dicionário, respondeu o dicionário estufando o peito e exibindo suas duas mil e tantas páginas.
O casal não sabia o que era um dicionário.
– Um dicionário, explicou o livro com voz orgulhosa e um tanto surpresa é “o conjunto de vocábulos de uma língua, ou de termos próprios de uma ciência ou arte dispostos em ordem alfabética e que fornece além de definições , informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia etc.”
O casal não entendeu nada.
– A gente é analfabeto, explicou a mulher.
O livro das palavras foi pego de surpresa.
– Mas analfabeto, deixe-me ver aqui, é “ aquele que desconhece o alfabeto; ou aquele que não sabe ler nem escrever”.
– A gente queria muito saber ler e escrever, confessou o homem.
O livro não podia acreditar:
– Vocês não sabem ler?
– Nem escrever, disse o velho de chapelão.
– Mas então vocês não sabem nada!, exclamou o dicionário.
– Como assim? perguntou a mulher.
– Ué, disse o dicionário. – Se vocês não sabem ler nem escrever vocês não sabem gramática, matemática, ciências, história, geografia… ou seja…vocês não sabem nada.
O casal trocou olhares.
– Ler, escrever, gramática e matemática a gente não sabe não, reconheceu o velho.
– Mas sabe outras coisas, garantiu a velha.
– O quê por exemplo? quis saber o dicionário.
O velho sorriu.
– Eu sei trabalhar na roça, sei preparar a terra e sei plantar e colher, disse ele. – Também sei construir casa, fazer telhado e levantar cerca. Sei tratar de animais, ordenhar vaca, sei domar cavalo bravo, caçar, pescar, tanta coisa…
– E eu, disse a velha – sou cozinheira de mão cheia.
– A mais melhor das redondezas, completou o velho.
– E sei costurar e lavar roupa, sei cuidar da horta, do galinheiro e da filharada. E completou: – A gente tem nove filhos, dois morreram. O resto vingou, graças a Deus!
– Hoje tá tudo graúdo, completou o velho, com orgulhoso. – Cada homão e mulherão que dá gosto. A gente tem até neto!
O dicionário percebeu que sabia conversar mais sobre definições e lições e menos sobre assuntos banais do dia-a-dia como amor, trabalho e vida familiar.
– Se a gente for falar tudo que a gente sabe, moço, disse o homem, – a gente fica aqui o mês inteiro e não dá conta do recado. Por exemplo: eu canto e toco viola e até sei fazer viola. E brincou:
– E jogo baralho com os amigos.
A velha riu dando uma cotovelada no braço do marido.
– E eu sei ajudar as moças na hora de parir, disse a mulher. – Já botei mais de duzentas crianças nesse mundo de Deus. E sei fazer muito remédio com as plantas do mato.
O livro lembrou-se do homem apressado em busca de alguém que pudesse ajudar sua mulher a dar a luz.
– Fora isso, lembrou o velho, – a gente gosta de arrasta-pé.
– Arrasta pé?
– É moço, a gente gosta de dançar samba.
Uma vaca mugiu ali perto.