Gaspar, eu caio!
Fui pro mar colher laranja
De como enganei o sol
Estão batendo na porta
O livro dos pontos de vista
Faz de conta que estamos num restaurante e notamos que a pessoa da mesa ao lado pega um mamão maduro, abre e faz uma careta desapontada. É possível que o sujeito tenha escolhido a fruta bem madura pois crê que mamões assim são mais doces e deseja comer um mamão doce. Ficou desgostoso ao perceber que o mamão já tinha passado do ponto. Essa é uma explicação para sua ação e reação. Podem haver outras. É possível, por exemplo, que ele nunca tenha visto um mamão na vida, resolveu experimentar e não gostou. Vai ver que um parente querido do vizinho de mesa morreu engasgado com um mamão e aquela triste lembrança voltou naquele momento. Quem sabe, ao cortar o mamão, o sujeito tenha pensado: “Quando mais precisava, fulano não me deu uma mão!”. Ou então, pode ser que o sujeito seja feiticeiro e acredite que o estado das sementes dos mamões maduros sejam capazes de fazer revelações sobre o futuro. Fez cara feia por ter descoberto que, ao sair do restaurante, será atropelado por uma jamanta carregada, por coincidência, de mamões.” (1)
A existência de pontos de vista variados acontece porque as pessoas são parecidas e, ao mesmo tempo, muito diferentes umas das outras. Afinal, cada uma tem sua experiência de vida, sua cultura, sua história, suas crenças, seus desejos, seu estilo e gosto pessoal, enfim, sua maneira de ser. Aliás, é uma questão de respeito humano jamais esquecer disso quando olhamos uma pessoa à nossa frente.
O assunto tem aparecido no meu trabalho desde O peixe que podia cantar, meu primeiro livro, e depois em vários outros como Um homem no sótão, Nossa rua tem um problema, Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas, Chega de saudade, O livro das palavras e agora este O livro dos pontos de vista.
Quero lembrar o seguinte: vivemos cercados de livros didáticos, apostilas e manuais técnicos mas nem sempre reparamos que eles costumam ser textos monológicos, ou seja, tratam dos assuntos através um único e exclusivo ponto de vista. É preciso que assim seja pois, caso contrário, seria impossível ensinar e transmitir o conhecimento necessário à construção da nossa educação formal e técnica.
Pois bem, uma das características mais relevantes da literatura de ficção é, ao contrário, sempre tentar fugir das lições e informações objetivas e exatas. A razão é simples: os temas abordados pela literatura não costumam ser passíveis de lições e exercícios. Como pensar em métodos, teorias e exatidões quando queremos falar das paixões humanas; de medos e sonhos; da busca do auto-conhecimento; de ambigüidades e contradições; de manias; de esperança; de incoerência ou, para ficar no nosso tema, da diferença entre as pessoas e seus pontos de vista? Como, por exemplo, “ensinar” e dar “lições, métodos e exercícios” a respeito do que sentimos em relação ao Outro? Refiro-me a gostar ou não gostar. Refiro-me a conviver com a diferença essencial, muitas vezes incompreensível e inacreditável, entre nós e as outras pessoas.
Uma coisa é certa: se todos os homens fossem absolutamente diferentes, as sociedades não existiriam e sem elas a humanidade não teria a menor chance de sobreviver. Por outro lado, se todos os homens fossem absolutamente iguais, a humanidade também não existiria pois seria destruída pelo tédio e pela mesmice. Eis porque a diversidade entre os homens e seus pontos de vista é tão rica, vital e importante. É ela a principal razão do livro que o leitor tem agora em mãos.
Pobre corinthiano careca
Cap. 13
José Pedro saltou da cama feito um guerreiro. Naquele domingo, estava pronto para o que desse e viesse. O jogo Corinthians e Boca Juniors ia ser às quatro da tarde.
De manhã, jogou bola num terreno baldio perto da rua Rocha, mas só para matar o tempo. Sua cabeça não conseguia imaginar outra coisa que não fosse o jogo.
Depois do banho, almoçou e, vestido com o uniforme completo do Corinthians, foi para a sala e ficou esperando. Bem que tentou descansar um pouco no sofá, mas não conseguiu.
Enquanto a mãe costurava, José Pedro coçava o umbigo preocupado. Tinha escutado notícias alarmantes no rádio. Que o Corinthians ia jogar desfalcado de vários jogadores importantes. Que Wilson Mano, o jogador que sustentava a defesa inteira, estava contundido, com uma lesão no calcanhar e jogaria no sacrifício. E o pior dos piores: Marcelinho Carioca não ia jogar por causa de uma distensão na virilha sofrida no último treino. Nem tinha embarcado para a Argentina com o resto da delegação.
Enquanto isso, infelizmente, o Boca Juniors ia jogar com o time completo e ainda teria as estréias confirmadas de Maradona e Caniggia.
Não vai ser mole, pensava José Pedro, verificando a careca com a unha.
O papagaio do vizinho perguntou se o doutor queria café e soltou uma gargalhada espalhafatosa. Em seguida, latiu e começou a cantar.
A máquina de costura continuava com seu zumbido, anda pára, pára anda, como um incansável trenzinho elétrico.
José Pedro pensou em Camila.
Um dia ele aprenderia a escrever direito, só para fazer um verso bem bonito para ela. Imaginou a cena. Camila, distraída, andando na rua Augusta. Ele chegando perto e dizendo: “Fiz uma coisa pra você”. Puxava do bolso um papel e entregava. Parecia um filme de cinema mudo. Ela botava as duas mãos no peito e dizia: “Pra mim?” Abria o papel, lia e sorria encantada.
E então os dois, na imaginação do menino, iam embora andando de mãos dadas pela calçada.
É pau, é pedra, é o fim do caminho…
O difícil era fazer verso para uma pessoa chamada Camila. José Pedro futucou a orelha preocupado. Camila rimava com o quê? O menino começou a pensar em palavras terminadas em ila. Lembrou só de uma: gorila. Os olhos de José Pedro ficaram maiores. Era impossível fazer um verso de amor com um gorila no meio. Tanta menina bonita por aí e ele tinha que gostar logo da Camila, com aquele nome complicado de rimar!
Um frio cruzou a espinha de José Pedro. O tempo tinha voado. Estava na hora do jogo. O menino ligou a televisão.
— Chega mãe! — gritou, tentando ajustar a imagem colocando uma palha de aço na antena. — Você prometeu! Com a máquina de costura ligada não vai dar para assistir o jogo!
Dona Sueli consultou o relógio. Bocejou. Estava mesmo cansada. Foi para a cozinha preparar pipoca e limonada para o filho.
Os times entram em campo. Foguetório. Escalações. Entrevistas. Fotografias. Ouvem-se os hinos nacionais dos dois times. A câmera mostra jogador por jogador. Diego Maradona está risonho e magro. Aparenta ótima forma física. José Pedro franze o nariz. Maradona e Caniggia cantam o hino argentino emocionados. José Pedro faz o sinal da cruz. É dada a partida.
O Corinthians, infelizmente, parece assustado dentro do campo. Dois minutos de jogo. Falta perto da área a favor do Boca. Maradona ajeita. Toma distância. Finge que vai cruzar e manda um petardo. Ronaldo, o goleiro corintiano, salta mas não acha nada. Bola na trave. A torcida argentina vibra.
José Pedro apanhou um monte de pipocas e enfiou de qualquer jeito na boca.
O jogo continua. O Corinthians está irreconhecível. Não consegue armar as jogadas. Ninguém acerta um passe. Os minutos giram devagar. Parecem grudados no relógio. Viola faz outra falta, reclama e é expulso. Na seqüência, Maradona passa por dois, vai até a linha de fundo e cruza para Caniggia fazer de cabeça: 1 X 0 para o Boca Juniors.
Dona Sueli suspirou. Estava com sono. Disse que ia para o quarto descansar.
O Corinthians luta mas, infelizmente, nada dá certo. Passes errados, chutes tortos e até reversões na hora de cobrar a lateral. Uma desgraça. “Assim não vai dar!”, pensou José Pedro com os olhos grudados no aparelho. Fim do primeiro tempo. José Pedro foi ao banheiro, com a porta aberta. Enquanto observava, de cima, seus dois pés afastados sobre o ladrilho, a privada no meio e aquele jato caindo espalhafatoso, perguntou-se por que às vezes o xixi vinha com espuma e outras vezes, sem. Na sala, a voz do locutor anunciava que, para o segundo tempo, entrava um tal de Chinfrim no comando do ataque corinthiano.
“Chinfrim?”, quis saber o menino apertando a descarga.
José Pedro nunca tinha ouvido falar nesse jogador. O locutor também não. De acordo com o repórter de campo, Chinfrim, um moleque de dezesseis anos, um simples juvenil, reserva do reserva do reserva, tinha acabado de chegar de Lorena para treinar no Corinthians e, na falta de outro, ia entrar na fogueira. Era o único atacante disponível no banco de reservas e, como o ataque não estava funcionando, o técnico resolveu arriscar. Perdido por um, perdido por dez, afirmou o técnico durante a entrevista.
“Chinfrim?”, pensou José Pedro esfregando a careca com as dez unhas.
Começa o segundo tempo. O sufoco continua. Maradona mata a bola na testa e sai pelo campo com ela equilibrada na cabeça. Chinfrim, um mulatinho franzino, menino ainda, tenta tirar a bola do craque argentino e toma um chapéu inacreditável. “Olé!”, grita a torcida.
José Pedro engole um punhado de pipocas sem mastigar.
O Corinthians simplesmente não consegue tocar na bola. O Boca Juniors dá um show. Maradona, então! Dribla, dá carrinho, dá lençol, toca por baixo das pernas, ajeita de calcanhar, passa de letra, chuta de trivela, dá meia lua, um arraso. A única coisa que o Boca não consegue fazer, graças a Deus, é outro gol. A bola bate na trave, toca no joelho de Ronaldo, na canela do zagueiro e não entra. Um sem-pulo de Caniggia chega a bater na nuca do arqueiro corinthiano antes de espirrar pela linha de fundo. Do lado do Corinthians, ninguém se entende. O estreante Chinfrim, coitado, parece um vira-lata fugindo dos automóveis no meio da avenida 23 de Maio na hora do rush.
O comentarista lamenta o erro do técnico corinthiano. Se sem Chinfrim já estava difícil…
Enquanto José Pedro roia as unhas das duas mãos ao mesmo tempo, a câmera dá um close. Caniggia aparece conversando com Maradona. Os dois riem. A televisão mostra tudo. É lateral do Boca. Maradona manda a bola para Caniggia que devolve para Maradona. Os dois argentinos começam uma tabelinha, só que ao contrário. Em vez de buscarem o gol corinthiano, correm na direção contrária, rumo ao gol do próprio Boca Juniors! A torcida aplaude e ri. Até os jogadores do Boca parecem confusos com a manobra. Os corinthianos não sabem se param, se fogem ou se choram. O juiz põe a mão na cintura e olha para o bandeirinha. É uma tremenda humilhação. José Pedro ficou em pé esmigalhando as pipocas na mão. Os dois craques argentinos, tabelando e rindo, entram alegres dentro de sua propria área. Neste momento, explode o inesperado Chinfrim, rouba a bola de Maradona e, rápido, toca com classe para o fundo da rede.
— Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooool!
José Pedro saltou pelo apartamento feito um macaco elétrico. Deu cambalhotas, plantou bananeira, derrubou o abajur e, de joelhos, fez o sinal da cruz três vezes e ainda beijou o carpete.
Lá fora, a cidade inteira explodiu entre fogos, buzinadas e gritos de gol. A torcida do timão é mesmo imensa. Até o papagaio do vizinho comemorou.
O jogo muda de figura. O Corinthians, claro, tranca-se na defesa e o Boca Juniors parte com tudo para cima, no desespero. Maradona agora xinga e reclama. Tarde demais. O juiz apita o fim do jogo. Empate sofrido de 1 X 1.
O livro das palavras
Cap. 5
O livro das palavras seguiu caminhando por um chão cada vez mais inesperado, cheio de tipos de terra misturados, areias, pedras, folhas e buracos, que alguns chamam “estrada de terra”. Foi tentando entender o tamanho e a forma que um amor pode ter.
Um fogo que arde sem se ver? Uma ferida que dói e não se sente? Um contentamento descontente? Não conseguia, nem de longe, encontrar nada parecido dentro das páginas de si mesmo.
– Justo eu, que tenho milhares de verbetes! estranhou ele, pensativo.
Apesar disso, sentia-se bem.
Tinha sido delicioso descobrir a força bruta do mar, as ondas incontroláveis indo e vindo batendo na praia e aquele casal apaixonado.
“A paixão é parecida com o mar”, pensava o dicionário sem saber direito explicar como nem por quê.
A estrada da terra era cheia de subidas, descidas e curvas. Depois de uma longa descida, o livro viajante encontrou um casal de velhos.
Ele usava chapéu de abas largas e um paletó muito puído. Ela vestia uma saia comprida e tinha uma flor presa nos cabelos brancos amarrados num rabo de cavalo. Fumava cachimbo. Os dois conversavam sentados num barranco. Ele estava descalço. Ela usava sandália de plástico e meia.
O livro se aproximou. O velho perguntou se ele sabia as horas. O livro disse que sim.
– Horas são “segmentos de tempo equivalentes a sessenta minutos, e vigésima quarta parte de um dia solar ou do tempo em que o planeta Terra leva para girar em torno de si mesmo”.
O casal arregalou os olhos.
– Ô loco sô! A gente só queria saber as horas, moço.
O dicionário explicou que sabia muito bem o que eram as horas, os minutos e os segundos mas não usava relógio.
A mulher mudou de assunto. Contou que eles pararam ali para descansar. Pretendiam ir à missa mas a igreja ficava longe.
O dicionário revelou que era um livro e que estava viajando para conhecer a vida e o mundo. .
– Livro? perguntou o homem. – Livro de histórias?
– Muito mais que isso! Sou um dicionário, respondeu o dicionário estufando o peito e exibindo suas duas mil e tantas páginas.
O casal não sabia o que era um dicionário.
– Um dicionário, explicou o livro com voz orgulhosa e um tanto surpresa é “o conjunto de vocábulos de uma língua, ou de termos próprios de uma ciência ou arte dispostos em ordem alfabética e que fornece além de definições , informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia etc.”
O casal não entendeu nada.
– A gente é analfabeto, explicou a mulher.
O livro das palavras foi pego de surpresa.
– Mas analfabeto, deixe-me ver aqui, é “ aquele que desconhece o alfabeto; ou aquele que não sabe ler nem escrever”.
– A gente queria muito saber ler e escrever, confessou o homem.
O livro não podia acreditar:
– Vocês não sabem ler?
– Nem escrever, disse o velho de chapelão.
– Mas então vocês não sabem nada!, exclamou o dicionário.
– Como assim? perguntou a mulher.
– Ué, disse o dicionário. – Se vocês não sabem ler nem escrever vocês não sabem gramática, matemática, ciências, história, geografia… ou seja…vocês não sabem nada.
O casal trocou olhares.
– Ler, escrever, gramática e matemática a gente não sabe não, reconheceu o velho.
– Mas sabe outras coisas, garantiu a velha.
– O quê por exemplo? quis saber o dicionário.
O velho sorriu.
– Eu sei trabalhar na roça, sei preparar a terra e sei plantar e colher, disse ele. – Também sei construir casa, fazer telhado e levantar cerca. Sei tratar de animais, ordenhar vaca, sei domar cavalo bravo, caçar, pescar, tanta coisa…
– E eu, disse a velha – sou cozinheira de mão cheia.
– A mais melhor das redondezas, completou o velho.
– E sei costurar e lavar roupa, sei cuidar da horta, do galinheiro e da filharada. E completou: – A gente tem nove filhos, dois morreram. O resto vingou, graças a Deus!
– Hoje tá tudo graúdo, completou o velho, com orgulhoso. – Cada homão e mulherão que dá gosto. A gente tem até neto!
O dicionário percebeu que sabia conversar mais sobre definições e lições e menos sobre assuntos banais do dia-a-dia como amor, trabalho e vida familiar.
– Se a gente for falar tudo que a gente sabe, moço, disse o homem, – a gente fica aqui o mês inteiro e não dá conta do recado. Por exemplo: eu canto e toco viola e até sei fazer viola. E brincou:
– E jogo baralho com os amigos.
A velha riu dando uma cotovelada no braço do marido.
– E eu sei ajudar as moças na hora de parir, disse a mulher. – Já botei mais de duzentas crianças nesse mundo de Deus. E sei fazer muito remédio com as plantas do mato.
O livro lembrou-se do homem apressado em busca de alguém que pudesse ajudar sua mulher a dar a luz.
– Fora isso, lembrou o velho, – a gente gosta de arrasta-pé.
– Arrasta pé?
– É moço, a gente gosta de dançar samba.
Uma vaca mugiu ali perto.