O moço do correio e a moça da casa de tijolinho

Sobre carteiros e cartas

Sempre simpatizei com o trabalho dos carteiros. Em geral à pé, subindo e descendo ladeira, lá vão eles incansáveis, todo o santo dia, de rua em rua, de casa em casa, enfrentado sol, chuva, vento, frio, calor e até, às vezes, dentadas de cachorros malfeitores, com aquela sacolinha dependurada no ombro, carregados de correspondência para entregar.

Moro na mesma casa há vinte e tantos anos. Vários carteiros já trabalharam na minha rua. Não consigo me lembrar de um que fosse antipático. Tenho a impressão de que todos os carteiros são gente boa. Talvez porque saibam que sua profissão é muito importante. É gostoso receber cartas. Não me refiro a folhetos de propaganda, mensagens burocráticas ou informes e boletos bancários. Falo em cartas pessoais escritas à mão. Mensagens que trazem notícias, agradecimentos, afetos, conselhos, saudades, pedidos e sentimentos. É sempre prazeroso abrir o envelope, desdobrar a carta e examinar a letra do remetente. Letras manuscritas são únicas, algo particular, íntimo e revelador.

Por causa dos computadores, muita gente passou a enviar suas mensagens pela internet. Até mesmo mensagens pessoais! É triste. Escritas por teclados, essas cartas mambembes ficam parecidas com folhetos de bancos, anúncios de publicidade e manuais técnicos. Temo que um dia as pessoas não saberão mais escrever a mão. No lugar de letras e garranchos absolutamente pessoais e inesperados, teremos as mesmas Times Roman, Lucida, Univers, Verdana, Arial e outros tipos frios, mecânicos e padronizados. Tomara que esse tempo demore para chegar.

Cartas escritas à mão têm vitalidade, são calorosas e significativas. Podem ser tão pessoais que chegam a ter o perfume e até as digitais da pessoa que as escreveu. Significam que alguém de carne e osso em algum lugar, sei lá onde, lembrou-se da gente, precisa da gente, sentiu saudade, deseja mandar ou receber notícias da gente. Na verdade, elas carregam um pouquinho da pessoa do remetente, afinal, nossa letra é um pedaço da gente fora da gente.

Receber uma carta dessas é uma confirmação de que não estamos sozinhos na vida e no mundo. Ter certeza disso é precioso e reconfortante. Já colocou hoje, no correio, uma carta para alguém que você gosta de verdade? Não?! Caramba! Está esperando o quê?

Vou-me embora desta terra, é mentira eu não vou não!

Fingiste que me enganaste
Eu fingi que acreditei
Foste tu que me enganaste
Ou fui eu que te enganei?

Quadra popular

Este livro faz parte da Série do Zé Valente criada tendo em vista a formação de leitores por meio da ficção, da linguagem poética e do contato com diferentes gêneros literários. Adivinhas, quadras populares, brincadeiras com palavras e anedotas, se mesclam às histórias, poesias, ditados, e até deliciosas receitas, como a de bolo de laranja e a de bala puxa-puxa, numa miscelânea capaz de mostrar ao leitor o quanto podem ser diversas e divertidas as formas de se expressar.

Além de tudo isso Vou-me embora desta terra, é mentira eu não vou não! apresenta a proposta de um roteiro para a criação de histórias. Ao criar a própria narrativa e compará-la com a dos colegas e com as do próprio livro, o pequeno leitor terá oportunidade de entrar em contato com seu potencial criativo e assim aprimorar seu texto e sua capacidade expressiva.

Histórias como O caso do espelho, A conta maluca ou A língua do papagaio, bem como a história do cachorro que fala e tem dúvidas existenciais, ou as divertidas trapalhadas de Zé Valente e seu amigo Zé Ninguém fazem com que o leitor penetre no mundo lúdico da imaginação e da ficção.

A linguagem acessível do livro, nas palavras do autor, traz a esperança de que “os pequenos leitores leiam, se distraiam, tenham idéias, soltem a imaginação, pensem na vida, caiam na gargalhada, se emocionem, e que, assim, encantados, passem a gostar de ler!”

Papagaio come milho, periquito leva a fama!

Eu venho do dá e toma
E vou para o toma e dá
Nunca vi dá cá sem toma
Nem toma lá sem dá cá.

Quadra popular

Este livro faz parte da Série do Zé Valente criada tendo em vista a formação de leitores por meio da ficção, da linguagem poética e do contato com diferentes gêneros literários. Histórias engraçadas como a do rei que achava que era uma vaca e a dos três velhos conversando sobre a velhice, misturam-se com poemas, quadras populares, adivinhas, piadas engraçadíssimas como a do louco que subiu no poste ou a do filho que não quer acordar para ir à escola e receitas deliciosas (vale a pena provar a do pãozinho de queijo!).

Fora isso, alguns texto tem um caráter de crítica social e questionamento: como o do menino e do homem que não sabe ler ou o que trata de uma grande questão: o que é o tempo? O jogo do Disparate e as línguas para se falar em código são formas lúdicas de brincar com as palavras, que os leitores vão adorar! Isso sem falar nas sempre divertidíssimas aventuras de João Valente e seu sítio maravilhoso!

A linguagem acessível do livro, nas palavras do autor, traz a esperança de que “os pequenos leitores leiam, se distraiam, tenham idéias, soltem à imaginação, pensem na vida, caiam na gargalhada, se emocionem, e que, assim, encantados, passem a gostar de ler!”

O livro das palavras

A cena de um dicionário vaidoso que parte por aí disposto a comparar as palavras de dentro de si mesmo com as coisas da vida e do mundo, surgiu na minha cabeça faz tempo e acabou virando O livro das palavras, publicado em 1993, pela Editora Formato.

O problema é que depois do livro pronto, fiquei cheio de dúvidas. Faltava nele alguma coisa e eu não sabia bem o quê. Deixei o tempo passar. Por sorte, tive oportunidade de retomar o texto em 2005 e é este trabalho que o leitor tem agora em mãos.

Acho que o tempo me ajudou a compreender melhor o livro que tinha criado. Retrabalhei o texto inteiro, alterei cenas e diálogos, acrescentei capítulos e personagens novos e ainda tentei esclarecer certos temas importantes da história.

Refiro-me principalmente aos diversos significados que uma mesma palavra pode adquirir; à possibilidade da existência de diferentes pontos de vista a respeito de um único assunto; e ainda à oposições como teoria versus prática; discurso versus ação; fatos concretos versus teses abstratas.

Por exemplo, a noção abstrata “miséria” e a miséria mesmo, concreta e situada na vida de uma pessoa, costumam ser coisas completamente diferentes. É fácil fazer estatísticas, discorrer e teorizar sobre a miséria. É muito difícil senti-la na própria pele.

Tomara que o leitor goste de como o livro ficou. Uma coisa é certa: com os desenhos da Mariana Massarani ele está muito mais bonito.

Araújo & Ophélia

Além de Araújo e Ophélia, personagens deste livro e também de Chega de saudade, outros textos meus também trazem personagens idosos. Penso principalmente no pesquisador viajante de O peixe que podia cantar, meu primeiro livroem  Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas; em O sábio ao contrário; nos velhos dos contos “A epidemia ao contrário” e “A linha do horizonte” do livro Se eu fosse aquilo; no tio Werner deTrês lados da mesma moeda e nos dois professores aposentados da USP de Lúcio vira bicho.

Uma das razões desses velhos aparecerem em algumas de minha histórias, deve-se, creio, ao fato de que, na infância, tive a sorte de conviver com tios muito velhos, gente de setenta a oitenta anos ou mais. Lembro-me de observá-los com meus olhos de criança, alguns muito religiosos, outros fumadores de charutos e bebedores de uísque, uns sérios, outros cheios de piada, uns saudáveis, outros não, alguns caducos, outros tocadores de piano, outros ainda extraordinariamente lúcidos.

A outra razão é que sempre achei precária e insuficiente a divisão de pessoas em faixas de idade. Embora seja útil – serve, por exemplo, para organizar as classes na escola ou para determinar fatias de mercado –  se levada ao pé de letra, transforma pessoas em meros estereótipos. É preciso relativizá-la.

Conheço velhos tão cheios de vida, planos e energia que parecem e agem como “jovens”. Vejo também, por aí, jovens tão sisudos, desanimados e complicados que parecem até gente “velha”.

Por outro lado, a diferença entre uma criança que tem família, casa, comida e escola de outra, da mesma idade, que nasceu e mora na rua é óbvia e dolorosa. A vida mesmo, tenho certeza, sempre foi bem mais complexa e humana do que essas divisões de pessoas em faixas etárias que, na sua abstração,esquematismo e constrangedora simplicidade, estão muito aquém da vida concreta e situada.

Chega de saudade

Araújo ama Ophélia, meu segundo livro, foi publicado, em sua primeira versão, pela Melhoramentos, em 1981. O texto curto, dirigido principalmente ao público infantil, conta a história de dois velhinhos, ex-namorados na infância, que se reencontram no fim da vida, tomam coragem e decidem defender certa árvore que uma construtora pretende derrubar.

Com o livro publicado nas mãos, percebi que ainda havia muita coisa para contar naquela história. Quem era Ophélia? Tinha filhos e netos? Como sua família reagiu diante de seu reencontro com Araújo? Quem era Araújo? Ele também tinha filhos e netos? Era casado ou solteiro? Os dois voltaram a namorar? Casaram-se de novo? Que fim levaram eles?

Diante de tantas perguntas decidi retomar a história e escrever um novo livro que não anulasse o primeiro mas, sim, entrasse em outros detalhes e trouxesse mais informações. Assim nasceu o livro Chega de Saudade, dirigido a um público mais amplo e publicado, em sua primeira versão, pela Moderna, em 1984.

O livro foi muito bem e o tempo passou. Mais tarde, revi e reescrevi o texto inteiro mas quero contar outra coisa.

Lá por meados da década de 90, fui convidado por uma professora para conversar com idosos que tinham lido o livro. Eles freqüentavam uma espécie de clínica geriátrica. Nunca tinha tido uma experiência desse tipo antes e topei.

Era um grupo de umas 20 pessoas com idades que iam dos 70 aos 80 e pouco anos. O pessoal era muito simpático, tinha gostado do livro e o papo rolou solto.

Durante a conversa, percebi que as pessoas, volta e meia, dirigiam olhares e sorrizinhos para uma das senhoras do grupo. Era, sem dúvida a mais velha de todos. Bem magrinha, muito surda, tinha um sorriso luminoso e uns olhos vivos que pareciam duas jabuticabas.

Era tanta brincadeira que eu acabei perguntando o que, afinal, estava acontecendo.

Todos muito risonhos pediram que ela mesmo contasse.

Pois bem, aquela senhora viúva, de mais de oitenta anos, uns meses antes, voltando para casa, tinha esbarrado num senhor também de idade. Com o esbarrão a bengala do sujeito foi parar longe. A mulher ajudou a pegar a bengala, os dois começaram a conversar e, conversa vai, conversa vem, ela contou que tocava piano. Ele adorava música. Conversaram mais, marcaram um encontro e, enfim, para encurtar a história, iam se casar na semana seguinte.

Saí desse encontro feliz da vida. Primeiro porque tive certeza de que meu livro fazia todo o sentido. Segundo porque, puxa, como é bom sentir na pele que a vida é imensa e pode ser muita rica, complexa, inesperada e apaixonante principalmente se a gente deixar.

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