Se eu fosse aquilo

Existe algo pior que chuva nas férias? Existe: é ver o rabinho de uma lagartixa passeando sobre o bife que você está prestes a abocanhar… dá pra imaginar a cena? É de arrepiar!

E qual seria a sua reação se desse de cara com aquilo? Tem gente que viu e adorou, até babou de alegria, alguns ficaram assustados, outros ainda estão falando mal ou roendo as unhas de raiva…

Espera, só mais um exemplo: você já imaginou se alguém, num estalar de dedos, assim clec, conseguisse resolver todos os problemas das crianças de rua?

Por essas e outras histórias é fácil descobrir por que o escritor e ilustrador Ricardo Azevedo vem conquistando mais e mais crianças e adolescentes. Imagina situações criativas, escreve textos deliciosos, sem encheção de lingüiça ou liçãozinha de moral. E as ilustrações, além de engraçadas, fazem a fantasia voar.

Assim, a cada página, Ricardo vai surpreendendo, emocionando, fazendo rir, pensar… A gente vai descobrindo um monte de coisas da vida e até se reconhecendo nas histórias, nos poemas, nas ilustrações…

Trezentos parafusos a menos

A primeira edição de Trezentos parafusos a menos foi publicada em 2002 e em 2004 ganhou o White Ravens, prêmio dado pela Biblioteca Internacional de Livros para Crianças e Jovens de Munique. Imagino que a história desse livro tenha nascido a partir da minha própria experiência como pai. Quantas e quantas vezes na vida fiz ou disse coisas e, de repente, dei de cara com um dos meus filhos, às vezes os três juntos, coçando a cabeça com olhos arregalados e abismados como se dissessem: “meu pai é o fim da picada!”. Por certo, quando criança, também olhei meus pais e senti exatamente o mesmo espanto e a mesma incredulidade. Creio que essa mistura de desentendimento e querer bem, surpresa, incômodo, estranhamento, culpa e admiração, tudo isso mais algum divertimento e ironia, ajudam a gente a construir a intimidade com as pessoas de quem a gente gosta. Somos diferentes uns dos outros e conviver com a diferença é uma espécie de arte que a gente vai aprendendo devagarinho ao longo da vida. Só sei que a partir da imagem inicial, uma menina sentada na privada examinando os ladrilhos do chão e pensando no pai, surgiram na cabeça mil cenas e logo comecei a escrever. Lembro de ter decidido trabalhar sem um plano geral: escrever um capítulo de cada vez sem pensar no que aconteceria depois, muito menos num desfecho. E foi o que fiz. Escrevia o capítulo várias vezes até achar que ele estava resolvido. Relia no dia seguinte e só então pensava numa sequência. Foi divertido trabalhar dessa forma e até utilizei o mesmo “método” em outros livros. Como não podia deixar de ser, durante o percurso, surgiram reformulações. Por exemplo, quando estava no meio do texto, me dei conta de que seu Luiz e dona Ruth, os pais de Tatiana, poderiam ser muito jovens, coisa que não havia planejado. Fui obrigado a retomar os primeiros capítulos e ir acertando as coisas em função deste dado novo. O fato de eles serem um casal jovem não só alterou a minha compreensão geral da história que se formava, como influiu nas cenas que ainda iriam acontecer. Com certeza, muitas ideias nasceram das emoções e observações do meu dia a dia. O personagem Jeferson, para ficar num exemplo, é inspirado no Jeferson, um menino que vivia debaixo do viaduto da Washington Luiz pertinho da casa onde eu morava na época. Sua irmã menor chamava-se Tatiana. O irmão mais velho estava na cadeia. Eram filhos de uma doméstica que perdeu o emprego, foi morar na rua e morreu de aids. Outra coisa: sou músico Amador e amigo de alguns músicos. Embora nunca tenha sonhado em trabalhar com música, essa possibilidade nunca me foi estranha, eis por que pude escrever sobre o assunto. Como estudei no Colégio Porto Seguro, de tradição alemã, tive a sorte de conhecer vários alemães-peças-raras como o Fritz Munduruku. A cena do restaurante, no capítulo 13, veio do Teatro Invisível, criado pelo genial dramaturgo Augusto Boal, e entrou na história não tenho a menor ideia como (quem quiser saber mais sobre essa rica experiência da arte teatral, dê uma espiada no Google. Vale a pena). Enfim, posso dizer que fui escrevendo e, aos poucos, de bocado em bocado, as cenas foram se alinhavando por elas mesmas. Com uns oito ou nove meses de trabalho, o texto de Trezentos parafusos a menos estava pronto.
O autor
P.S.: “Coisa nº 33” é naturalmente uma homenagem ao extraordinário músico Moacir Santos. Quanto ao “Leito de Procusto”, aconselho o leitor a dar uma pesquisada no assunto. Acho importante conhecer e jamais esquecer o que esse facinoroso bandido grego fazia no leito com suas vítimas. Uma coisa é certa: seu espantoso crime continua vivo até os dias de hoje!

Um homem no sótão

Prêmio Banco Noroeste/Bienal do Livro (melhor texto infantil), 1982
Menção honrosa na Bienal de Ilustração de Bratislava (Checoslováquia), 1983

Este livro é uma edição reformulada, com novo projeto gráfico e novas ilustrações. Era publicado pela Melhoramentos e agora pela Ática.

Um homem no sótão é um escritor de contos para crianças que vive recluso escrevendo histórias inclusive aos sábados, domingos e feriados. Ao iniciar um conto sobre a raposa que iria comer os patinhos, a própria raposa salta de sua cabeça para se rebelar e questionar o seu papel sempre de vilã. Mostra que é carnívora e portanto gosta mesmo de carne. Também os patinhos vêm em sua defesa mostrando que eles também não são santos, comem minhocas, peixinhos e besouros.

O escritor fica confuso diante da rebeldia de seus personagens, iniciando outra história. Novamente seus personagens se materializam e discutem seus papéis. Agora é a vez da princesa e do sapo.

O escritor cansado e frustrado de suas histórias que não se completam, resolve tirar férias e eis que ao retornar cheio de fôlego faz seu novo conto, tentando mudar o papel de uma bruxa tornando-a boa. Mas, não agradou, a bruxa surge revoltadíssima: “Com ordem de que você teve a coragem de inventar que sou boa e que isso e aquilo? Hein?”

Depois de mil confusões surgem também furiosos os anõezinhos dizendo: “Essa velha é uma praga” “até a polícia anda atrás dela! Você foi louco de escrever que ela é uma santinha”.

Assim, o escritor entra em depressão profunda e não escreve mais, nem sai de sua cama. Até que um dia ao sair da depressão e passear pelas ruas, volta ao seu sótão e escreve uma nova história que é o relato desses últimos acontecimentos de sua vida misturado à ficção de seus personagens.

As ilustrações, feitas pelo próprio autor são bonitas, entram de maneira inusitada pelas páginas, como quando o personagem principal desaba no chão e vê-se apenas suas pernas esticadas. Vários elementos do sótão ficam espalhados pelas páginas, sapatos, o cachimbo do escritor e algumas baratinhas, representando bem o momento de criação em que a pessoa fica completamente envolvida e o mundo em volta esquecido, uma confusão.

Há também um detalhe: o livro tem a numeração das páginas de trás para frente começando pela página 57, já que o fim do livro remete para o início, sugerindo uma circularidade narrativa.

O livro dos sentidos

Este livro corresponde à reunião dos seis títulos que formam a coleção Menino de orelha em pé, lançada pela Ática em 1995. Cada livro da coleção aborda um dos sentidos:Menino de olho vivo, a visão; Menino de orelha em pé, a audição; Menino de nariz esperto, o olfato; Menino meio arrepiado, o tato; e Menino de língua de fora, o paladar.

Tudo isso somado a um outro, muito importante e quase sempre esquecido: o sexto sentido, a intuição, tema central do livro Menino sentindo mil coisas.

A proposta de juntar os seis títulos num livro único surgiu naturalmente. Construídos  através da voz de um menino que expressa suas opiniões pessoais, suas emoções, idéias, imaginações, fantasias e lembranças, os textos de O livro dos sentidos procuram tratar o tema dos sentidos humanos de forma ficcional, poética e lúdica.

Existem pelo menos duas maneiras de tratar um assunto como este. Uma delas, mas objetiva, racional, didática, pode  ser encontrada nos livros de ciências, em alguns capítulos sobre o corpo humano e suas  características principais. A outra, a maneira subjetiva e poética, só pode ser encontrada na literatura. Entrar no território da literatura significa lançar mão da ficção, da linguagem poética, das emoções, fantasias, analogias e sonhos, enfim significa abrir espaço para a visão de mundo particular e única.

Reparando bem, quando olhamos o mundo de maneira racional e objetiva, em geral estamos querendo encontrar pontos comuns entre tudo, pessoas e coisas. Já quando olhamos o mundo do ponto de vista subjetivo, acabamos por encontrar as, por vezes, imensas diferenças.

É ótimo saber que temos pontos em comum. É fundamental não esquecer que, ao mesmo tempo, cada ser humano, independentemente de qualquer coisa, idade, sexo, raça, cultura, é sempre especial e tem sempre um jeito particular e único de enxergar a vida e o mundo.

No fundo, talvez seja exatamente essa síntese de O livro dos sentidos: os seis sentidos humanos descritos pelo ponto de vista pessoal, único e intuitivo de uma criança.

O motoqueiro que virou bicho

Texto revisto e reformulado.

Sei que vai ter gente me chamando de louco e mentiroso. Entretanto, posso jurar, o que vou contar aconteceu de verdade, não é ficção, não é nenhuma história  inventada por mim. Aconteceu no duro, na minha carne, na minha cabeça, nas minhas entranhas. Queria ver você, leitor, na minha pele. Queria ver você acorrentado, tomando porrada, sentindo medo. Medo, por exemplo, de ser castrado. Medo, por exemplo, de simplesmente  sumir, perder a própria identidade, virar uma espécie de fantasma que ninguém enxerga.

 

A primeira versão de o Motoqueiro que virou bicho tinha como título Lúcio vira bicho e foi publicada em 1998. Quase dez anos depois, acho que lá por 2007, resolvi reler o livro e escorreguei na leitura de algumas partes. Não tive dúvida. Era preciso mexer no texto para que ele pudesse fluir melhor. Na época, não tinha tempo nem cabeça para fazer isso. Só pude retomar sua leitura, agora com lápis na mão, em setembro de 2011. É preciso dizer que a estrutura do texto corresponde a uma narrativa linear e acumulativa, a viagem e as experiências vividas por um jovem chamado Lúcio, contada por ele mesmo, entrecortada por várias outras narrativas menores, encaixadas ao longo da trama e que, de alguma forma, dialogam com o enredo principal. Na releitura, cortei o relato sobre tia Vanda, feito pelo caminhoneiro na conversa do restaurante em Caçapava. Percebi que atrapalhava o fluxo geral da narrativa e acrescentava muito pouco ao livro como um todo. Acrescentei em seu lugar a lenda do corpo-seco, recorrente no vale do Paraíba. A história contada pela velha de olhos azuis, durante o sequestro da noiva de Taubaté, passou a ser a da princesa que se perdeu na floresta que, na versão anterior, vinha na voz de dona Cecília. O conto do príncipe Luís passou a ser contado por dona Cecília, certa noite, no sítio Santa Rita. Eliminei a história sobre o livro do destino contada pela professora aposentada da USP, também por acrescentar muito pouco. Fora isso, mudei o título do livro e mexi em alguns poucos trechos, buscando sempre dar mais ênfase a certas cenas ou esclarecer melhor os pensamentos e sentimentos de Lúcio durante sua estranha e inesperada trajetória.  Ao publicar o livro, em 1998, acreditava piamente que tinha escrito um bom texto. Anos depois, quando reli, encontrei problemas em sua construção. Escrever, pelo menos para mim, tem tudo a ver com a vida mesmo: é um aprendizado o tempo todo. Acho estimulante que seja assim.

Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas

Texto revisto, ampliado e redesenhado

Certo dia, faz tempo, estava numa rua em Pinheiros quando, do portão de uma casa, sai uma mulher alta, cabeça branca, óculos de aro grosso e vestido azul de bolinhas brancas, bastante decotado.

A mulher,  beirando os oitenta anos,  parecia sólida e muito expressiva. Foi um encontro relâmpago. Voltei para casa pensando: é o tipo da mulher que quando gosta de alguém pode ser muito generosa; em compensação, se não gostar… Continuei fantasiando.

Por outro lado, tudo bem, aquele dia ela estava assim, cheia de energia. Mas, e se no mês anterior ela tivesse, por exemplo, perdido um amigo querido ou, sei lá, pegado uma tremenda gripe?  Se eu a visse nesse estado, pálida, trêmula, com o olhos vermelhos e o nariz pingando, teria tido, com certeza, uma opinião completamente diferente a seu respeito. Entretanto, seria a mesma pessoa.

Isso na verdade, acontece com todos nós, independentemente de idades e de qualquer coisa. Temos momentos de força e alegria, quando parece que tudo vai bem e tudo vai dar certo.

Em outras ocasiões, a pilha fica fraca e, momentaneamente, viramos trastes humanos, seres lamentáveis capengando desanimados por aí. Senti que tinha material para inventar alguma coisa.

Já em casa, escrevi três opiniões sobre a tal mulher, três pontos de vista sobre a mesma pessoa. Dei o título de vendo uma velhota de óculos, chinelo e vestido azul de bolinha branca no portão daquela casa? O texto foi publicado primeiro na Revista Nova Escola e mais tarde pela editora FTD.

Agora, para esta nova edição, diminuí o título, dei uma revisada geral e escrevi mais três textos. Refiz também todos os desenhos.

Sei de escolas que, a partir  do livro antigo, têm estimulado as crianças a criar uma nova possibilidade para a personagem. Outra idéia é pedir que cada aluno escolha uma pessoa, sua conhecida de vista, e, a partir daí, invente uma vida para ela.

A ficção é sempre, pelo menos eu acho, uma forma de tentar entender as pessoas, a gente mesmo, a vida e o mundo.

A outra enciclopédia canina

Texto revisto e ampliado

Meu amigo tinha um pastor alemão. Lembro que a gente ficava conversando no jardim enquanto o bicho dormia perto. De vez em quando, o pai desse amigo chegava e sussurava, de brincadeira, no ouvido do cachorro: “Vai pegar o gato!” Era fulminante. O animal explodia no ar com os olhos acesos, pêlos arrepiados e dentes arreganhados. Saía pelo jardim feito um dragão, latindo em busca de um gato imaginário… Quase todo o mundo tem uma história de cachorro para contar.

Há casos heróicos de cães, verdadeiros rin-tin-tins, que salvaram vidas humanas. Há os que conhecem a arte de trepar em árvores. Há cachorros acostumados a fumar charuto e beber uísque. Na minha rua, por exemplo,quando eu era pequeno, tinha o Bismarck, um cachorro grandalhão que morava numa casa mais acima.

O Bismarck passava o dia fingindo que dormia na frente do portão. Quando vinha gente pela calçada, esperava a pessoa chegar bem perto e dava um bote de supetão, rosnando com a dentuça ameaçadora. A maioria das pessoas passava por ali todos os dias, já estava acostumada e continuava seu caminho como se nada houvesse acontecido.

Quem, em compensação, não sabia das coisas, levava o maior susto. Vi uma senhora idosa saltando um portão de ferro de mais de 1,20 metro de altura feito uma atleta de chapéu e guarda-chuva. Vi um sujeito pular da cadeira de rodas e sumir ao longe mancando em disparada. Acho que foi um tipo de milagre.

Nessas ocasiões, o Bismarck voltava radiante, exibindo um sorriso nos lábios. Sim. Tenho certeza. O Bismarck sabia rir. Vi com meus próprios olhos o sacripanta, com os dentes de fora, rindo e balançando cabeça, enquanto o povo fugia desesperado.

Conheço casos dramáticos. A tragédia do cachorro, grande e pulguento, que, despachado para uma fazenda, fugiu, enfrentou mil e tantos quilômetros de estrada, voltou, entrou em casa, deitou-se debaixo da mesa da sala de jantar, fechou os olhos e morreu, deixando a família com sentimento de culpa pelo resto da vida.

Outra coisa. Conheci um sujeito que um dia pegou e olhou para seu cachorro nos olhos. Não sei se é verdade. O cachorro olhou nos olhos dele. O sujeito olhou mais. O cachorro também. Ficaram assim por algum tempo, em silêncio profundo, olho no olho. O cara contava isso com lágrimas nos olhos. Dizia que, de repente, o cachorro estremeceu, colocou as patas no peito, abriu a boca e, num esforço impressionante disse: “Os-car!” Acontece que Oscar era o nome do tal sujeito…

São histórias e mais histórias. Posso dizer que sempre gostei de ficar observando cachorros. O jeito dos cachorros. Seus focinhos. Seus maxilares. Os lábios. As pintas do rosto. As manchas pelo corpo. Os pêlos. O formato da cabeça. O movimento das orelhas. O modo de andar. O temperamento. O brilho no olhar. Tudo.

Quem já não admirou uma família de vira-latas, o pai na frente chefiando, depois a mãe atrás e os filhotes, atravessando com perícia as ruas perigosas da cidade? Confesso que muitas vezes a fisionomia ou os modos de um cachorro me fizeram lembrar uma determinada pessoa. Talvez a espécie canina tenha muito mais coisas em comum com a espécie humana do que se imagina. Afinal, as duas são gulosas, gostam de carinho, sentem dor, sonham, sabem carregar pulgas e, claro, vivem sempre tentando encontrar o melhor jeito para ser feliz.

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